quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A Reforma Protestante: Liberdade e Verdade


Quando faltavam 500 dias para os 500 anos do Brasil, em 1998, pensei, já contados mais de 13 anos, sobre a REFORMA PROTESTANTE. Neste tempo dizia que “com quase 500 anos de Reforma Protestante (eram 481 anos), desde 31 de outubro de 1517, a pergunta que se faz é: o que aconteceu com o espírito da Reforma?”
Contestava, neste discurso de formatura, sobre a liberdade, a democracia, o progresso e a questão do livre exame protestante, aliás, tratava de buscar compreender quais eram os desvios gerados pela Reforma e Modernidade. Afirmara o efeito negativo da Reforma, ou seja, o individualismo, a insubordinação e a desintegração do sistema e redes sociológicas mais amplas, além do mais, esse indivíduo protestante viu que perdera a proteção de muitos símbolos e dessa alienação um espírito de revolta constante e, talvez, até inconsciente, decodificava o binômio do espiritual e do político.
Haviam mais missivas no ar daquele palco do discurso quase que teatral!
Quando Darcy Ribeiro olhou o Brasil de 1500 anos até aqui, dando por concluído sua última versão de O Povo Brasileiro, ele se perguntava: “Porque o Brasil não deu certo?”. Mas esse Brasil que Darcy julga "não deu certo" tem como referência o eurocentrismo. Ainda assim a metáfora cabe para a questão dos pensadores da Reforma, alguns como, Max Weber, Paul Tillich – aqui no Brasil Rubem Alves: Qual é a marca da Reforma? A pergunta deixava inevitável algumas outras questões: o protestantismo é medieval ou funda a fase moderna? A razão, a subjetividade, elevou-se com o protestantismo para uma antropologia emancipada, isto é, o homem tornou-se racionalmente autônomo, assim como será consolidado pelo filósofo Kant (no século XVIII)? O protestantismo mudou de fato o seu discurso contra a FORMA contestada da instituição de seu tempo?
Kant, filósofo Moderno: 1724-1804
No pretenso desvio dessas teses é que se coloca o espírito da Reforma como liberdade. Não é outra coisa senão a LIBERDADE presente no desejo, na psiquê (sonhos) de Martinho Lutero? Mas ao mesmo tempo trata-se de entender por que o espírito da Reforma (liberdade) não teria permanecido?
A equação dessa problemática da liberdade aparece na contradição infortuita, pois, o que desintegra o senso de liberdade no protestantismo é a verdade. A verdade como objeto de busca, como horizonte e significação de mundo, não seria nociva ao espírito do protestantismo, mas, a verdade enquanto posse, enquanto poder, verdade que constrói sistemas, estruturas que não permitem o diálogo, a verdade manifesta dogmaticamente, intolerante, inflexível, implacável, portanto, jogos de verdades nas redes de poder, isso é que consome o espírito do protestantismo. Dessa pseudo-verdade veio a inquisição da Idade Média, mesma inquisição psicológica do protestantismo desfigurado: verdade suicida, como notou o sóciólogo Durkhein em O Suicídio, ou seja, os protestantes europeus cometiam mais suicídios que os católicos ou os judeus; Durkhein ligou o fato da tragédia como conseqüência da cultura protestante em formar instituições menos fortemente integradas e simbolizadas para o indivíduo, quer dizer, elementos, que antes eram significativos para o indivíduo, passam  a inventar um novo indivíduo agora desprotegido dos símbolos institucionais.
Matar, cometer suicídio, pelo menos pensado na perspectiva psicológica, por causa da obsessão pela verdade, verdade enquanto posse e arma de poder, verdade que não suporta o pensamento de exercício da liberdade, nesses campos de ideias humanas que duplicam dicotomias – como a ortodoxia e heresia, ou, os dogmas e as doutrinas -  é um modo de guerra religiosa e subjetiva infindável. (Sem falar do fundamentalismo contemporâneo). Desse modo fica a saudade da liberdade na barganha que essa busca insaciável pela verdade efetiva. Verdade que assassina a liberdade?! Paradoxalmente, quanto maior esta verdade, menor a humanística que refaz a imagem da liberdade política.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

A Reforma Protestante (Semper Reformanda)

Quero destacar algumas mudanças do nosso mundo histórico, mudanças que influenciaram as ideias. A primeira grande mudança deu-se por intermédio de ARQUIMEDES (287 a.C a 212 a.C), na época antiga, foi ele quem inventou a alavanca, com pouquíssima força se pode gerar enorme vantagem mecânica, logo, Arquimedes pode dizer “Dai-me um ponto de apoio e levantarei o mundo”. A segunda grande mudança veio com o astrônomo COPÉRNICO (1473 a 1543), na idade média, coube a ele deslocar o conhecimento do mundo - o centro era a terra (teoria geocêntrica) para afirmar diferentemente da cultura religiosa que o centro é o sol (teoria heliocêntrica) – Nicolau Copérnico viu diferente e referente à nossa atmosfera terrestre: ao próprio sistema solar. A terceira é a REFORMA PROTESTANTE (31 de outubro de 1517) assunto que vou comentar mais abaixo. A quarta grande mudança veio com Sigmund FREUD (1856 a 1939) que colocou em andamento a influência do inconsciente na vida psíquica das pessoas, antes de Freud se pensava apenas na teoria da consciência, mas Freud disse que isso era apenas um iceberg em relação ao oceano do inconsciente.
Há uma analogia inevitável e tacitamente prática para todas estas mudanças, aliás, não exaurindo outras grandes mudanças e invenções importantes nas ideias humanas. Em Arquimedes a idéia de deslocar a força, Copérnico, a idéia de deslocar a visão, a Reforma Protestante, a idéia de deslocar a interpretação e Freud, a idéia de deslocar a alma da consciência para a inconsciência.
Entretanto, para se refletir nessa ideia do deslocamento da interpretação da Reforma Protestante, interpretação que será deslocada da instituição religiosa medieval, assim como configurada no século XVI, para supresa de muitos, não é provável uma classificação ou nomeação de que a Reforma sai da e vai para a, já que a Reforma abarca o princípio da transcendência institucional e retoma a invenção do indivíduo como elemento antropocêntrico e racional.
Pensadores protestantes brasileiros, como Rubem Alves, fértil escritor e cronista, escreveu Protestantismo e repressão, e Israel Belo de Azevedo, destacou muito sugestivamente na obra A celebração do indivíduo sobre  o princípio protestante do indivíduo; e também, outros protestantes que são conhecidos mundialmente, como o sociólogo alemão Max Weber, escreveu A ética protestante e o “espírito” do capitalismo e expôs sobre a ascese da burguesia protestante para fins de maior ganho e acúmulo de capital (a partir do controle da família, dos prazeres, da disciplina, da diligência), enfin, a reforma protestante pode ser pensada por diversos ângulos e ideias, mas penso que há um aspecto mais técnico compatível com o modo do historiador, do filósofo, do sociólogo e do teólogo retratarem esse fato à maneira de não duplicarem, como tende ao banal algumas inserções sobre o assunto. Já o estilo de texto demasiado personalista, isto é, baseado na personalidade de Martinho Luthero, deveria primeiro considerar Melanchton: quem foi o pioneiro sistemático da reforma protestante. Em outras palavras, nem todos falam da Reforma quando pensam a Reforma ou sobre ela escrevem; nesse sentido, é possível dizer que nem todos podem dizer sobre a Reforma ou sobre a Reforma escrever.


Paul Tillich, 1886-1965
(Teólogo Protestante)
 
O teólogo Paul Tillich (1886 a 1965), que orientou a tese de doutorado do filósofo contemporâneo Theodor Adorno, nos inspira sobre o que ele diz ser o poder formativo do protestantismo, ou seja, o protestantismo original tem uma constante resiliência (inconformada) com as FORMAS, reformar, é re-FORMAR em contínuo, por isso, semper reformanda (em latin, “sempre reformada”). Acredito que desse lócus é provável a seguinte sistematização de algo a pensar sobre o protestantismo:
Primeiro, pensar a interpretação, como LUTHERO ao perceber que a verdade precisava ser resgatada daquela fase histórica dissimulada do mundo medieval, que estava a serviço de poucos e não estava revelada acessível a todos. A verdade não tinha publicidade. LUTHERO nos ensinou que é possível trazer a verdade para o contexto das pessoas e do seu dia a dia.
Segundo, pensar a racionalidade desde aquele veio dos reformadores - como pessoas ousadas - que aplicaram o discurso e a linguagem com coragem, ou seja, além do que eles professavam (conforme elementos de sua fé), usaram o maior instrumento de convencimento, a razão, e desenvolveram a maior mudança histórica do seu tempo (portanto, com conteúdo racional).
Terceiro, pensar sobre os direitos porque os reformadores fizeram um manifesto focado para que o acesso ao conhecimento dos fatos não somente dos fatos religiosos, mas também outros como os políticos e os sociais, fossem eles fatos de direito a todos para interpretarem e decidirem. Isso quer dizer que os reformadores lutaram para que não somente o contato com DEUS fosse um domínio para todas as pessoas, mas eles queriam também um lugar politicamente melhor para se viver naquele tempo.
Acredito que não somente a REFORMA, mas também  a CONTRA-REFORMA, ambos campos de ação das ideias tiveram que pensar esses pontos - e muitos outros; por issso, a história, a filosofia, a sociologia e a teologia retratam a origem protestante transcendendo o estudo das personalidades e envoltos nos processos, nas redes, nas disposições do poder e nos jogos das verdades dessa trama social, política e histórica da REFORMA PROTESTANTE do século XVI.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Ciências Humanas

Qual é o plano de enfoque - para não dizer objeto - das ciências humanas? Equacionar essa questão não é coisa fácil. Alguns simplesmente dizem ser o homem (humano), outros a linguagem, e há aqueles que elegem o discurso (e o texto), ou seja, a arena tem no seu páreo as Ciências Humanas nucleada por algumas boas controvérsias que disputam sobre qual deva ser consideravelmente seu enfoque específico. Torno acirrada a disputa ao opinar que o plano da experiência (do ser humano) merece devido lugar de destaque nessa disputa conceitual. E levo essa discussão para uma paixão na educação: a categoria da infância.
Supondo - nesse campo da educação - a infância como alvo singular da CH, ou da pedagogia relativa à CH, ou da Sociologia da Infância como campo da CH, logo, o que importa é olhar esses atravessamentos constantes que a experiência reflete do saber e do poder sentidos (e imbricados) na sua constituição, sobretudo, textual e institucional - da imagem de infância.
Lembro SARMENTO e como tem dado relevante atenção à infância, via o campo específico da Sociologia da Infância. Mérito seu pontuar a diferença entre as categorias criança e infância à proporção em que ele destaca o conhecimento histórico-social. Mas uma investida opcional passa pela perspectiva do saber-poder para ver a criança-infância como construção estratégica e tática do poder, por exemplo, via práticas discursivas, ou, como produto da instituição social. Contudo não se pode negar o ganho da ideia de infância como construção sócio-histórico. Entrementes, o caminho arqueológico ou genealógico (foucaultiano) faz uma analítica das práticas discursivas com o saber-poder, não por isso, a sociologia da infância ficaria na negativa, aliás, em ambos, a experiência - com as crianças e infâncias - norteia essa metodologia.
Quando Amorim (2004) diz: “Nas ciências humanas, o objeto é não somente falado e atravessado pelo texto, mas ele é texto. Texto a explicar e a interpretar, ele é objeto falante” noto que cai muito bem esse marco da experiência, tanto no texto, tanto no conflito das escrituras e o que se pode “falar” com isso tudo, o que ela registra como polissemias (sentidos) e polifonias (vozes).
Mas o texto está relativo ao sujeito e à experiência do imediato, do acontecimento. Na verdade, não tem mais porque existir o texto como se fosse apenas texto-gramática ou um tipo Revelação. Tem-se agora presumido o inevitável sujeito (que fala dentro da historicidade, da temporalidade não mais apenas como produto da história, ou melhor, ele está junto à própria história). Não há mais tal dicotomia hegeliana. Portanto, desse modo, a experiência se insere como estigma no livro e a CH tem o seu elemento indispensável.

Política de Inclusão Social e o Outro.



Pensava sobre quem é o outro (loucos, homossexuais, pobres, bandidos, deficientes físicos, criança, mulher, etc.) e rememorava algumas leituras em Habermas que fala sobre a inclusão política do outro, ele discute a democracia, lembrava também, de Derrida que contempla o outro na literatura, de Canguilhem que percebe o outro a partir do campo e escrito da medicina ou, de Foucault, este fala do outro a partir da experiência da loucura (Idade Clássica), portanto, do outro que se evade na linha do fora, do outro que habita um mundo exterior à razão estabelecida (ocidental e pós-colonial).
Há mesmo uma possibilidade variada de se pensar o outro.* Mas nessa constelação teórica de evadir-se de si para com o Outro – alteridade ou outricidade – a fim de que o outro-diferença não seja somente flagrado como outricidade dos sujeitos, e sim, outricidade entre os sujeitos – formatados por técnicas de si e das práticas discursivas que falam do outro lado da razão: desrazão: pois “esse êthos da liberdade é também uma maneira de cuidar dos outros [...]” (FOUCAULT), então, o outro está no processo do político.
O outro é certamente, conforme a ratio imperialista, um dado “[...] irreconhecível, indefinível, inominável, ingovernável” (SKLIAR). Assim, a justaposição dos tempos (tanto da escola como da criança) fica numa desrazão e contraste com a razão, aliás, numa proporção temporal que em vez de repetir o real, pelo contrário, tem por mérito a virtualização da diferença. São tempos que não se encontram do mesmo modo!
Portanto, o outro não é somente físico, espacial, temporal é também virtual - e com a crianças, com a infância, o outro passa pela sua corporeidade conforme as marcas desse ser-criança: brincadeiras, tripudias, ludicidades, ironias, fugacidade, dispersão, irracionalidades e cuidado estético de si.
Mas a escola nunca falará do outro, da diferença, da pluralidade, da multiplicidade, da democracia, do direito e da inclusão, se o outro não for pensado a partir do corpo da criança (que tem voz sim), portanto, tem uma ação da criança, um discurso da criança e um modo político das crianças ainda por ser notada. Contudo, o arranjo da esfera pública e a escola democrática não será efetivada apenas por políticas de inclusão que legislam, classificam, nomeiam o outro, pois, dentro de uma lógica imediatista, funcional e capitalista e para a visão de uma escola como se ela fosse um lugar à parte da sociedade, o outro continuará sendo um recorte da razão estatal.


Referências:
1 CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Trad. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas; revisão técnica Manoel Barros da Motta; Trad. do posfácio de Pierre Macherey e da apresentação de Louis Althusser, Luiz Otávio Ferreira Barreto Leito. 6ª ed. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 2007.
2 DERRIDA, Jacques. Gramatologia. Trad. Miriam Chnaidermam e Renato Janine Ribeiro. São Paulo : Perspectiva, 2006.
3 FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. Trad. José Teixeira Coelho Neto. São Paulo : Perspectiva, 2007.
4 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Trad. George Sperber, Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota. São Paulo : Edições Loyola, 2007
5 SKLIAR, Carlos. Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Trad. Giane Lessa. Rio de Janeiro : DP&A, 2003.
*Emmanuel Lévinas, Enrique Dussel, também contribuem com essa temática do OUTRO.

Crônica da Sala de Aula (a infância)

Na tessitura de seu ambiente e configuração de seus corpos, as crianças estão sentadas, mais um dia, mais uma aula, mais uma vez. Elas podem ter apenas seus lúdicos seis ou sete anos de idade. Os pequeninos – do ponto de vista jurídico - não são considerados seres autônomos e plenamente capazes de usufruir o que se entende por direito e responsabilidade social, bem conforme o espírito de um Estado que se diz de Direito, que se diz também de ordem Civil, ou, que prega e proclama a noção de igualdade para todas as pessoas (para todos os seres).
            Os infantes pululam como “marginais” à Lei (selvagens, estrangeiros), tomam visibilidade jurídica na condição de negativadas à medida que “protegidas” (por serem vítimas dos crimes, da pedofilia, da fome, dos maus tratos e abandono da família ou da instituição e do esquecimento social), por efeito, elas deverão ser indivíduos, sujeitos pueris: são nomeadas, classificadas, identificadas: abstraídas nessa torrente quantificadora da realidade estatística.
            Dentro dessa normalização, jus à infância institucionalizada do sistema educacional, surge uma pessoa chamada de “tia”: a professora. Ela responde não só com a articulação dos lábios, mas com a alma também. Talvez não tenha lido Paulo Freire e aceita o adjetivo sem nenhuma crítica. Assim ela inicia mais uma dinâmica, lê uma história, inquire às crianças a narrativa do texto, depois separa no quadro algumas palavras: “chácara”, exercita a pronúncia certa: - chácara é bem diferente de “chacara”; escreve outra palavra perto desta, xícara; os infantes já não pronunciam “xicara”; e quando são motivadas a dizerem o que as palavras significam no seu contexto, relatam com espontaneidade vários fatos objetivos: - Meu pai toma café na xícara; - Eu vou à roça. Eu vou à chácara do meu avô!
            Do silêncio elas falam, expressam, dizem, mas seus dizeres não são ecoados, vociferados, não são acústicas audíveis, porque disputam com as intervenções da professora, lógica óbvia, posto que seja justo à essa dispersão, equiparada à falta de sincronismo de disciplinamento e ordem da sala; são acontecimentos que elas verbalizam sobre o que conectam aos seus universos paralelos.
            As falas das crianças! São bolhas flutuantes, flatos do silêncio. Mas são falas que tentam se orquestrar, dentro de um fundo caótico, conquanto não dure muito à proporção que o efêmero “silêncio” da intervenção, da interdição, venha mais uma vez, de tal forma que não prevalecerá nem um, nem outro, ou seja, nem o caos, nem o silêncio, tampouco o terceiro elemento que escusa a presença dos atores naquela sala de aula: a gramática da infância, ludicidade das letras do mundo.

Pensamento e Ação: o que as crianças podem fazer? (Hannah Arendt)

A hipótese de a escola desenvolver o político como pluralidade e liberdade da criança deverá notar a importância de se compreender essa racionalidade das infâncias no modo especifico de depor sobre suas verdades, inclusive, reservando, nesse espaço escolar, a experiência de um provável ensaio para a esfera pública. Mas a escola resiste a tal pretensão à medida que a intensificação do processo do Estado em atingir metas e elementos políticos de controle social suplanta a condição humana de a criança agir e discutir. Parece que isso acontece porque a escola moderna não consegue aplicar o modelo de democracia da igualdade, ou seja, se a política se exerce entre iguais, enquanto as crianças são desiguais nesse processo adultocêntrico, hierárquico e vertical, a escola está numa emblemática cisão do sentido da política e da real função.
       Certamente a solução dessa problemática no entremeio tangível de uma transição para o mundo - porque é nesse impasse que a criança está - deve olhar essa arena ou esse território escolar, posterior à família (instituição), como o espaço mais relevante das crianças, embora diante também dessa normalização infantil deve-se também optar em processos que estão entre o sentido educativo e o sentido político. Portanto, imagino que o conflito (entre o educativo e o político) dirime-se desse estranhamento que torna familiar o espaço escolar, familiar no sentido de ensaiar a esfera da ação política, ou  melhor, da política da criança.
       Mas, por fim, entendo que Arendt deixou em suspenso um campo a explorar, qual racionalidade política é essa que pode vir das crianças? Como os in-fans – aqueles que não tem voz - podem ascender à ação e ao discurso? Quais experiências podem construir no mundo público? Como entender o espaço-escolar assimilado à esfera pública do aparecimento da criança e da manifestação da pluralidade e da liberdade?

Pensamento e Ação: o que as crianças podem fazer? (Hannah Arendt)

Brilhante quando Arendt separa o pensamento da ação ao mesmo tempo em que empreita-nos sobre o que estamos fazendo (?), então, ela separa o pensar do querer e, desse limiar, a filósofa alemã admiradora de Heidegger vai por em andamento noçoes sobre a ação e o discurso humano. Assim, a vita activa – que ela diz ser a ação, o trabalho e o labor - são dimensões da condição humana que não se confunde com natureza humana. Então ela discute historicamente o animal rationale (e vai à Roma e à filosofia medieval), discute o homo faber (estágios iniciais da era moderna) da ação e do discurso, por sua vez, discute o animal laborans (agora do século XIX) que passa a operar na mais alta produtividade, cujo metabolismo com a natureza é agora sua causa irredutível e maior, pois aquela revolução industrial (século XVIII) sintetizou o consumo, o produto e o processo dessa produção junto com o ser humano num só pacote e engrenagem.
       
Hannah Arendt 1906-197
Mas o que mais me chama a atenção em Arendt é a noção que ela cunha de “espaço público e político”: como lugar do plural – da pluralidade - capaz de permitir a ação e o discurso. O espaço do político tem relação com a ação e com o discurso e quando se faz um paralelo com as crianças e sua condição humana de ser criança, então, é inevitável perguntar que tipo de conflito ou impacto isso efetiva para com a razão pedagógica atual: essa ideia da invenção do mundo infantil. A sutileza dessa razão (que são tecnologias de governamento: dos corpos e das mentes das crianças) sufoca o aparecimento do espaço público ao mesmo tempo em que produz ocultamentos da liberdade da criança. O conflito é, portanto, da liberdade e da condição humana da criança ser criança.

Então há distinção da educação e da política já que a educação não absorve o político: porque a instituição escolar à medida em que é vista muitas vezes como lugar de reprodução do social (como pensa o sociólogo Bourdieu) ou de captura e de agenciamento do infantil, consuma-se então como a escola que coloca em trânsito um jogo de verdade diferente: da educação e da política. Mas essa política que falamos com Hannah Arendt é o aparecimento dos atores para a ação e o discurso a fim de tornar tangível um mundo melhor, participativo, construtivo e até previsível pelos acordos firmados entre as pessoas. Portanto é uma política diferente também, inclusive, porque esse agir em acordo toca na questão da irreversibilidade política. Mas parece que Arendt separa Educação de Política - nem tanto por objeção ou pessimismo, pelo contrário - pelo motivo de perceber que a escola de seu tempo não poderia chegar a tal marco e daquele modo institucional.
Ademais, eis que não se pode esquecer mais a lição da escola como um agenciamento ou como um rizoma (como diz Deleuze), ou seja, há linhas diversas tanto de fuga como de interceptação das multiplicidades desse território. E queremos acreditar que a escola consiga pensar e agir diferentemente sem gerar apenas dicotomias. Assim, a primeira questão que se deve propor é uma hipótese de ver a escola, em vez de, por exemplo, reprodução da realidade capitalista e cultural moderna, ser a escola capaz de ensaiar tal qual uma política específica com as crianças visando adentramento à esfera pública - através da ação e do discurso.

Estratégias de (Sobre)Vivência nas Práticas do Micropoder Tecidas pela Resistência das Crianças

       As tripudias, brincadeiras - indisciplina (na visão adultocêntrica) - são táticas de resistência da criança para com as teias do sentido de autoridade escolar? O conceito de autoridade prevalece quando descida ao cotidiano das crianças em sua invenção diária? Na verdade, a partir de Michel Foucault o conceito de “autoridade” pode ser “desconstruído”, em contraste, a questão do poder aparece - nas relações, processos e práticas escolares – não mais como pirâmide ou hierarquia que é dado por determinado centro. É daí que Foucault surge - impostado do método nietzschiano conhecido como genealógico - para encontrar a formação dos saberes a partir de seus domínios. Ou seja, a educação cria, inventa, produz e movimenta saberes que são também formas de poder que capturam os sujeitos na instituição.


Michel Foucault 1926-1984
Foucault pensa a idéia de micropoder  – não como estatuto universal, mas como “diagnóstico” - dentro de certo microcosmo que se atualiza em instituições ou em agenciamentos (como prisão, escola, hospital, igreja, etc.). A micropolítica ou o micropoder deduz que o múltiplo, o disperso é que surge dessas relações e práticas dos sujeitos ao flagrar a corporeidade (como é o caso do corpo da criança) para travar-se nele o embate das forças intrapsíquicas impetradas para sua docilização e utilização – discursos, estatutos, regimentos, regras, documentos, pedagogias – e para que fim? Torná-la (a criança) dócil  ou pouco resistente, e útil. Obviamente que isso nos faz pensar a educação, sem contudo negá-la, nem também dizê-la possível sem alguns dos seus padrões de controle, ordem, etc., porém, trata-se aqui, na verdade, de pensar junto aos que tratam da educação do pensamento das crianças quais são suas estratégias e táticas para o governo dos outros.

Essa analítica pode fazer por tentar resgatar - a conformação microhumana da criança - um nível de status político das crianças (pensada aqui diferente do raio da Lei e do Estatuto - ECA); posto que depois da concepção tradicional do poder - problematizado por  FOUCAULT, não mais como negativo, proibitivo, jurídico – terá sido remetido, dessa inflexão foucaultiana, (por rupturas?!) à positividade (pois é econômico e produtivo). Ele inventa o real e o faz acontecer! A disciplina, o controle, a organização, a ordem, os detalhes do programa escolar, esta é a microfísica e política do poder que o faz ser produtivo, alcançável e realizável.
       Por outro lado é preciso compreender porque a criança não tem voz e nem vez diante de uma maquinaria escolar, porque o jogo de sua resistência é indiferenciado. Pois a criança delata o equívoco da propalada autoridade escolar: tal fato é uma estratégia da máquina estatal em controlar a ordem escolar?!
       A quem queira intensificar a compreensão do conceito foucaultiano de PODER (aliás, conceito esparso em suas obras) e ainda queira torná-lo mais colocado nas práticas da escola - e nas posições de seus sujeitos – principalmente relativo à infância, deve se inspirar em algumas de suas obras como Vigiar e Punir, História da Sexualidade I (Vontade de Saber) e textos escolhidos como Microfísica do Poder e Ditos e Escritos IV.

Filosofia e Filosofia da Educação

Qual é a especificidade do saber filosófico (deixo essa pergunta apenas como link para problematizar a presente temática) e qual é o campo do saber da Filosofia da Educação? Ou melhor, quais são as questões e tarefas específicas da filosofia da educação?
Para a interceptação da filosofia com a educação e para uma definição, delimitação e/ou objetivo, é preciso pensar sobre a especificidade da filosofia da educação. Quero sugerir alguns pontos estratégicos dessa discussão.
A especificidade da filosofia da educação pode partir exatamente de algumas categorias que estudam o ser humano, como por exemplo, da  CATEGORIA VALORATIVA; e daí pode envolver, nessa discussão, a questão da construção de si (técnicas de si), desse modo, há de tocar, talvez, num tipo de filosofia axiológica, isto é, por puro gosto ou por escolha intencional, entre as muitas filosofias prováveis, optar-se-á por aquelas que tendem a refletir sobre os valores (grego: axiomas, αξίωμα) da subjetividade humana. E essa inflexão é sempre possível com a filosofia.
Mas também pode-se expor uma outra categoria, a  CATEGORIA da FINALIDADE. Esta poderá problematizar a questão do existir (e da existência), quer dizer, ela poderá dizer sobre a finalidade da educação, qual é o seu τελειος [teleios], “τελος” [telos]: acabado, completo, enfim, "aquele que alcançou o objetivo". Aliás, ela lembra a busca do velho e clássico parâmetro de "educar para que?". Desse ponto chega-se às velhas respostas, "emancipação", "cidadania", "formação", sem necessariamente apenas duplicar essas correntes sem a crítica importante. Por exemplo, Hannah Arendt não pensa que essa é uma função possível da educação.
Desse aspecto crítico as tarefas da filosofia da educação articulam-se com as Ciências Humanas, quando chegam à questão do sujeito, da história e da sociedade, da literatura e do (polêmico) objeto das ciências humanas (Ser humano? texto? Polissemias e polifonias? Experiência-escritura?); também, quando aborda-se o aspecto ético ou a intencionalidade da pessoa: sobre o existir social no tempo histórico que intercepta a prática política; por fim, quando a metodologia aplicada às pluralidades metodológicas colocam em conjunto algumas correntes já conhecidas, por exemplo: se escolhe uma de enfoque epistemológico e se de opta por outra de enfoque praxiológico: uma primeira que vem de dada epístême (ἐπιστήμη): ciência, conhecimento, ou outra que prioriza o discurso ou a prática política como do tipo foucaultiano do saber-poder: a política das práticas sociais a partir da polaridade do saber-poder que pensa o efeito de dominação do conhecimento nas instituições disciplinares.
ROUSSEAU 1712-1778
 Não é necessário dizer, com a filosofia da educação é preciso ler os clássicos escritos que adiantaram essa especifidade no tempo e na história da filosofia, pois, à medida em que se lê a filosofia, percebe-se também o condutos importantes que trazem à baila essa discussão da filosofia da educação. Incursões na obra EMÍLIO ou DA EDUCAÇÃO, do filósofo J.J-ROUSSEAU, por exemplo, não serão mais leituras ingênuas desconexas da educação. Nesse sentido, tal leitura há de redundar em colocações que tomarão alguns de seus TEMAS ou FRAGMENTOS como balizares. Portanto, pode-se afirmar que o pensamento político-social de Rousseau (que paira sobre o Emílio, sua grande obra da educação e talvez a primeira grande produção da filosofia da educação) trata da natureza do homem e da sociedade; ou de que existe aí uma dada experiência e observações de Rousseau que implicam num tipo específico de metodologia aplicada, ou seja, o filósofoso estuda metodologicamente e historicamente a educação com a filosofia.
Rousseau* disparou no tempo algumas ideias que ainda nos chamam a atenção: “Não se conhece a infância; [...] Procuram sempre o homem na criança, sem pensar no que ela é antes de ser homem.” (p.4); ou: “Se quiserdes um idéia da educação pública, lede a República de Platão [...] é o mais belo tratado de educação jamais escrito [...] Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana” (p.14-15). Portanto, dois temas contemporâneos, infância e política, são missivas rousseaunianas.

*ROUSSEAU, J.J. Emílio ou da educação. Trad. Roberto Leal Ferreira. 3 ed. São Paulo : Martins Fontes, 2004.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Educação e sua contradição (sobre Infâncias)

A educação precisa pensar uma das suas contradições, aliás, são várias as contradições educacionais. O mérito da educação permite em que tudo (talvez "tudo" seja muito!) se pode falar, se pode dizer, se pode escrever e se pode argumentar com a educação. Isso me fascina porque a educação abre-se, pelo menos em tese, e também por tendências dialéticas, dialógicas e da própria construção com o conhecimento - tecido, sistematizado e organizado, em tudo isso, a educação se coloca versátil (e acessível) às formas discursivas plurais. Por isso interceptar o seu campo é obviamente sempre tangível e dependendo da argumentação que se faz ou se provoca, há créditos.
Mas a educação não tem pensado muito sobre uma contradição básica, inclusive, contradição esta acima de sua razão profissional, da estrutura das políticas públicas, da arquitetura e instituição escolar que ela se inspira, enfim, a educação contradiz-se nessa relação direta com a INFÂNCIA, que podemos dizer, é o seu objetivo, função e sentido (da instituição educativa escolar). É uma contradição porque recorta um campo que deve ser relativo às infâncias e às crianças, considerando-se que há diversas infâncias e diversas crianças. A educação prática lida com a infância e a criança muito diretamente apresentada ao seu labor pedagógico!
Podemos suspeitar dessa contradição com algumas questões: Quem perguntou às crianças que estilo, cor ou forma aquela escola deveria ser construída? Quem conversou com as crianças sobre as disciplinas a serem planejadas, remanejadas ou inseridas no currículo daquele projeto escolar? Quem foi que insinuou juntos às crianças sobre os modos de viver as diferenças culturais, étnicas, sexuais, religiosas e de crenças propagadas na arena escolar? Como se pode estabelecer o espaço de convivência escolar apreciável ao jeito contemporâneo das crianças viverem a seu modo de ser (agir, pensar, falar e praticar)? Claro que as crianças não são os únicos atores do processo educativo, porém, sem elas toda eclipse educacional não funciona. Entrementes, fica no ar da contradição de seu foco infantil!
Pelo contrário, o que se percebe é que se prima provavelmente à maneira adultocêntrica, e os modos políticos estatais, bem como as interpretações do infantil segundo uma lógica cultural (principalmente pedagógica), muitas vezes, é a lógica capitalista, burocrática, do moderno e do progressivo. Portanto, se percebe que o mundo infantil é inventado dessa maneira. Wartofsky em A construção do mundo da criança e a construção da criança do mundo depõe-nos, neste enigma, a tatuagem dessa contradição da educação ao lidar com seu bem maior, as crianças. Aliás, por se falar nas produções pedagógicas, assunto que falarei depois, as contradições aparecem mais latentes.
Mas será que essa invenção (da educação sem a voz da criança) acontece sem resistência? Penso que não e certamente acho uma brecha: muita coisa que se pensa e diz sobre a indisciplina escolar, mais que uma perversão da ordem estabelecida como se formata em certas imagens dos atores escolares, pode também ser vista em conjunto com tipos de manifestos ou resistências das crianças. Inclusive, às vezes não se trata de indisciplina, posto que é mais razoável como ludicidade e estética das crianças. (Não se trata de dizer ao contrário, ou seja, que a indisciplina é reflexo da ordem escolar saturada, não é isso, não é essa a apologia, porém, a indisciplina pode ser vista no jogo dos indícios, dos sinais e/ou dos códigos que delatam a resistência das crianças.) Pelo menos uma coisa é certa: as crianças sabem muito bem da contradição da educação e procuram algum sentido contemporâneo para o ato de educar que está inserido nesse processo direto dos que lidam com a educação do pensamento das crianças e das infâncias.